O regresso de Mila a Portugal 

 

O que poderá ser Portugal se, hoje, não formos apenas uma porta de passagem de um mundo de que se foge, mas um local de memória, permanência e construção?

Por detrás dos números e dos acontecimentos da História há sempre nomes e pessoas concretas de carne e osso.  

Mila nasceu em Varsóvia (1929) e passou a infância na pequena aldeia rural polaca de Sarny, hoje território ucraniano. 

Exilada em Paris, para onde conseguiu fugir antes do extermínio de toda a população judaica de Sarny, pelas mãos das tropas nazis, a família Liberman e a sua pequena filha encontraram na capital francesa um porto de abrigo. 

Em Paris, Mila estudou num colégio interno para crianças russas e os pais desenvolveram um pequeno negócio na área têxtil. A iminência da invasão da capital francesa pelos alemães, apanha-os de férias em Biarritz com as malas cheias das roupas que produziam e pretendiam vender naquela estância de férias. 

A hipótese de deportação para a Polónia muda – num ápice – os planos da família de voltar à cidade que os acolhera. A fronteira de Espanha estava aberta e Portugal podia ser a porta de saída de uma Europa em guerra. Da vizinha Bordéus chega a boa-nova e com um visto na mão passado por Aristides de Sousa Mendes, cônsul de Portugal naquela cidade, partem num comboio em direção a Vilar Formoso rumo ao desconhecido. 

Da entrada em Portugal, Mila insistia em não ter memórias. A família é instalada na Figueira da Foz e durante meses aguarda a hipótese de partir para as américas. Colômbia, Perú, Estados Unidos, Brasil, onde fosse possível. Na praia, a educação aristocrática de Mila e o facto de falar francês chama a atenção de algumas famílias veraneantes que incentivam as suas filhas a brincar com a jovem. O pai de uma dessas meninas, ministro de Salazar, interessa-se pela sua jornada e ajudá-los-á a chegar a Lisboa no final do verão de 1940. E é em meados do mês de dezembro desse ano que deixam a Europa continental, no paquete Quanza, rumo ao novo mundo. Chegam ao Rio de Janeiro, em pleno Carnaval de 41, num ambiente festivo de cor e alegria que prenunciava o tom de uma vida nova.         

A biografia de Mila Liberman, a que acrescentou o apelido Zeiger pelo casamento já em São Paulo com um imigrante também judeu - e com que fez uma dupla imbatível-, explica na primeira pessoa muito da história do século XX e dos dias que agora vivemos. Uma mulher fascinante nascida na Polónia que, com os pais, fugiu de uma Europa insana e encontrou no “Brasil, País do Futuro” um palco à medida do seu brilhantismo. Em poucos anos, a partir das roupas trazidas na mala de Biarritz, tornou-se uma das mais bem-sucedidas empresárias têxtil do Brasil e o seu nome foi sinónimo de bom gosto no mundo da moda e na elite cultural brasileira.  

Poucas semanas antes de falecer, na sala da sua casa de São Paulo, perguntada sobre porque nunca tinha voltado a Portugal, entre um olhar surpreendido, amedrontado e uma tirada assertiva mas doce, respondeu: “nunca tive vontade de voltar àquele país cinzento que conheci”. Na parede, não muito distante, no retrato de Mila pintado por Di Cavalcanti pairava o mesmo olhar que toda a vida escondeu a sua própria tristeza.

Depois da morte da sua mãe, Sérgio (um dos seus quatro filhos) desembarcou em Portugal, um país já colorido que Mila, apesar das suas contantes viagens à Europa, Israel, EUA, não quis conhecer. Visitou a Figueira da Foz do século XXI e tomou conhecimento da existência do Museu de Vilar Formoso – Fronteira da Paz. Espantando, encontrou um sentido para os documentos, cartas, papeis, fotografias e as memórias contadas pela mãe no final da vida, editadas em livro postumamente. Ativista como é, já está a colaborar com o Museu. Mila Zeiger também faz parte dele. 

Sérgio acredita ter feito as pazes com o país que apesar de porta de acesso à liberdade não deixou boas memórias à sua mãe. 

O que teria sido da Europa sem a fuga dos judeus e o que seriam as “Américas” sem esse sangue transformador? O que poderá ser Portugal se, hoje, não formos apenas uma porta de passagem de um mundo de que se foge, mas um local de memória, permanência e construção?

 
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